MEU CARNAVAL

quarta-feira, 11 de março de 2009

Frei Beto*

Chegam o carnaval e, com ele, a tristeza de palhaço que vê o circo pegar fogo. Fico surdo aos tamborins, cego à desnudez das mulheres e de nariz tapado ao cheiro ácido do suor quente. É outro o Carnaval que tanto anseio. Não o de salões abarrotados de gritos desconexos nem o de desfiles que disfarçam de luxo a indigência do povo. Quero a alegria d’alma, arlequim bailando em meu espírito, o odor suave da colombina afagando os meus cabelos. Quero a serpentina enlaçando fraternuras e confetes salpicando de estrelas os telhados de meus sonhos. Quero o Rei Momo premiando o meu país de farturas e o corso da alegria atravessando as ruas dos meus passos. Guardo a nostalgia dos carnavais de rua, dos cordões de mascarados, dos carros alegóricos, dos blocos alegres, dos salões de serpentinas, dos adultos e das crianças misturados nas avenidas e nos desfiles de fantasias. Agora, há quê de tristeza nessa alegria compulsória. De foliões, viramos meros espectadores – ou melhor, telespectadores do reinado de Momo. O ágape dos piratas da perna de pau cedeu lugar ao erotismo dos destaques das escolas de samba. Felizmente já não se aponta a cabeleira do Zezé nem se pergunta se será que ele é. Onde andam as costureiras de fantasias originais, as máscaras que faziam inveja aos venezianos, o corso enfileirando pela avenida , apinhados de foliões? Onde andam as marchas-ranchos, as quadrinhas irônicas, a crítica mordaz aos políticos? Não irei a bailes ébrios de álcool nem me atarei a cordões que me algemam a liberdade. A mim pouco importa que, no Carnaval, homem se fantasiem de mulheres e mulheres vistam-se como homens. O que ambiciono é mais ousado: virar-me pelo avesso, trazer à tona aquele que sou e não tenho sido, travestir-me de mim mesmo, da minha face mais real e que, no entanto, trago mascarada nos demais dias do ano. É a loucura, essa loucura do sopro divino do qual sou feito. É ela que pretendo expor nas passarelas, nu, sem fantasias. Então, voarei alucinado pelas avenidas e, ao aterrissar no sambódromo, provocarei um silêncio reverencial, suspensão de todo respirar que só as epifanias suscitam. A multidão em delírio aplaudirá o próprio êxtase, embriagada de plenitudes. Despirei a fantasia do hedonista que me povoa e entrarei no corso dos que buscam os bailes do espírito. Desfilarei na Via Láctea, cavalgarei um asteróide, aplaudirei o rodopio de Gaia, porta-bandeira sob os olhos dourados do mestre-sala, o sol. Espalharei pelo teto do céu confetes de estrelas, e contemplarei os cometas cruzando serpentinas brilhantes. Não encherei minha solidão de cervejas nem mergulharei no mar de espumas brilhantes e ilusões estéreis. Serei insensatamente o clone de mim mesmo, arrancando-me novo de velhas células. Porta-bandeira atrevido, exibirei na escola de samba uma por uma de minhas quimeras,tão palpáveis quanto o amor que dói no peito. Rasgarei a minha máscara e, com os trapos, tecerei um tapete de utopias, sobre o qual dançarei o mais ousado dos frevos, até que amanheça em minha esperança. Gritarei como os náufragos ao avistarem terra firme e trarei o meu rosto pintado com as cores do arco-íris, para que todos vejam que bani a tristeza que me assalta ao se aproximar o Carnaval dos incautos, essa demência coletiva que satura os sentidos sem aplacar o desejo. Quero é festa, muita festa, com pierrôs embevecidos frente às promessas sedutoras de odaliscas formando cordão de madrugadas de silêncio, nas quais nem respiração se escuta, só o ritmo imponderável do mistério.
* É escritor e autor

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