DIA INTERNACIONAL DA MULHER

sábado, 7 de março de 2009


CARTA A SONIA LEBKNECHT

No dia 15 de janeiro fez 90 anos que a rosa vermelha do socialismo – Rosa Luxemburgo – morreu, assassinada a tiros, pela socialdemocracia alemã. Essa carta ela escreve a uma amiga, no período emque esteve presa. Mulher a frente de seu tempo, lutou por uma sociedade igualitária.

“(...) Ontem fiquei muito tempo acordada - agora não consigo dormir antes da uma, mas preciso ir para a cama às dez, porque apagam a luz, e então no escuro sonho com diversas coisas. Ontem, portanto pensava: como é estranho eu viver permanentemente numa alegre embriagues, sem nenhuma razão particular. Assim, por exemplo, aqui estou deitada nesta cela escura, num colchão duro como pedra, enquanto à minha volta, no edifício, reina a habitual paz de cemitério; parece que estou no túmulo; através da janela desenha-se no teto o reflexo do bico de gás ardendo a noite inteira diante da prisão. De tempo em tempo, ouve-se o ruído surdo de um trem que passa ao longe, ou então, bem perto, sob minhas janelas, o pigarro da sentinela que, com suas botas pesadas, dá alguns passos lentos para desentorpecer as pernas. A areia estala tão desesperadamente sob seus passos, que todo o vazio e a falta de perspectiva da existência ressoam na noite úmida e sombria. E aqui deitada, quieta, sozinha, enrolada em véus negros das trevas, do tédio, da falta de liberdade, do inverno - e, apesar disso, meu coração bate com uma alegria interior desconhecida, incompreensível, como se debaixo do sol radiante eu estivesse atravessando um prado em flor. No escuro, sorrio à vida, como se conhecesse algum segredo mágico que pune todo mal e as tristes mentiras, transformando-as em luz intensa e em felicidade. E, ao mesmo tempo, procuro uma razão para esta alegria, não encontro nada, e tenho de sorrir novamente - de mim mesma. Creio que o segredo não é outro senão a própria vida; a profunda escuridão noturna é bela e suave como veludo, basta saber olhar. No estalar da areia úmida sob os passos lentos e pesados da sentinela canta também uma bela, uma pequena canção da vida - basta apenas saber ouvir. Gostaria tanto de passar-lhe essa chave mágica para você perceber sempre, em todas as situações, o que há de belo e alegre na vida, para que você também viva na embriagues, como que caminhando por um prado cheio de cores. Longe de mim a idéia de contentá-la com ascetismo, com alegrias imaginarias. Concedo-lhe todas as reais alegrias dos sentidos que você deseja. Só gostaria de dar-lhe também a minha inesgotável serenidade interior, para não me preocupar mais com você, para que andasse na vida com um manto de estrelas protegendo-a de tudo que é mesquinho, banal e angustiante.

(...) Ah, Sonitchka, tive aqui uma dor violenta. No pátio onde passeio chegam freqüentemente carroças do exército, abarrotadas de sacos, de túnicas velhas e camisas de soldados, muitas vezes manchadas de sangue... São descarregadas, distribuídas pelas celas, consertadas, novamente postas nas carroças para serem entregues ao exercito. Outro dia, chegou uma dessas carroças, puxada não por cavalos, mas por búfalos. Era a primeira vez que via esses animais de perto. São animais fortes e maiores que os nossos bois, têm a cabeça chata, chifres recurvados e baixos, o que faz com que sua cabeça inteiramente negra, de grandes olhos meigos, se pareçam com a dos nossos carneiros. Originários da Romênia, são um troféu de guerra... Os soldados que conduziam a carroça diziam ser muito mais difícil capturar esses animais selvagens e ainda mais difícil utilizá-los para carregar fardos, pois estavam acostumados à liberdade. Foram terrivelmente maltratados até compreenderem que perderam a guerra e que também para eles vale a expressão “vae victis” (ai dos vencidos)... Só em Breslau deve haver uma centena desse animais. Eles que estavam habituados às ricas pastagens da Romênia recebem uma ração parca, miserável. Trabalham sem descanso puxando todo tipo de carga e, assim, não demoram a morrer. Há alguns dias, portanto, entrou no pátio uma dessas carroças cheias de sacos. A carga era tão alta que os búfalos não conseguiam transpor a soleira do portão. O soldado que os acompanhava, um tipo brutal, pôs-se a bater-lhes de tal maneira como o grosso cabo do seu chicote que a vigia da prisão, indignada, perguntou-lhe se não tinha pena dos animais. “Ninguém tem pena de nós, homens”, respondeu com um sorriso mau e pôs-se a bater ainda com mais força... Os animais deram finalmente um puxão e conseguiram transpor o obstáculo, mas um deles sangrava... Sonitchka, apesar da proverbial espessura e resistência da pele do búfalo, ela foi dilacerada. Durante o descarregamento, os animais permaneciam imóveis, esgotados, e um deles, o que sangrava, olhava em frente com uma expressão no rosto negro e nos meigos olhos de criança em pranto. Era exatamente a expressão de uma criança que foi severamente punida e que não sabe por qual motivo, nem por que, que não sabe como escapar ao sofrimento e a essa força brutal... Eu estava diante dele, o animal me olhava, as lágrimas saltaram-me dos olhos, eram as suas lágrimas. Ninguém pode ficar mais dolorosamente amargurado com a dor de um irmão do que eu, na minha impotência, com esse sofrimento mudo. Quão longe, inatingíveis, perdidas as pastagens da Romênia, suculentas e verdes, belas e livres! Como tudo era diferente, o sol brilhava, o vento soprando, os belos cantos dos pássaros e o melodioso chamado do pastor. E aqui, esta cidade estrangeira, horrível, o estábulo sombrio, o feno mofado, repugnante, misturado com a palha apodrecida, os homens desconhecidos, assustadores, e as pancadas, o sangue que corre da ferida aberta... Oh, meu pobre búfalo, meu pobre irmão querido, aqui estamos os dois imponentes e mudos, unidos na dor, ma impotência, na saudade. Entretanto, os prisioneiros agitavam-se em volta do carro, descarregavam os pesados sacos e levavam-nos para dentro. Quanto ao soldado, metera as mãos no bolso e passeando a grandes passos pelo pátio, ria e assobiava baixinho uma canção da moda. Diante de mim, a guerra desfilava em todo o seu esplendor.
Escreva logo. Abraços, Sonitchka,
Sua Rosa

“Soniuscha, querida, fique calma e alegre, apesar de tudo.
Assim é a vida. É preciso tomá-la corajosamente, sem
Medo, sorrindo – apesar de tudo.
Feliz Natal!!!”

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